segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Afinal, onde é que estamos?

A utilidade prática desta postagem pode até ser colocada em dúvida mas acho que é fundamental termos uma visão mais ampla do problema. Na última semana tivemos outro ataque da "Quadrilha da van". Os caras são criminosos profissionais que assaltam geralmente agências bancárias e carros-fortes. Não vou discutir os métodos deles porque foge ao interesse do blog de discutir a defesa pessoal. Não existe forma de um cidadão comum (e muito pouco sobra para a polícia também, como confirma o delegado na reportagem) pois os caras são profissionais com poder de fogo enorme e com um ataque muito bem planejado. O que gostaria de observar é o fato de que se trata provavelmente de um grupo de criminosos que foi preso no ano passado e que foi inocentado pela Justiça, voltando a agir normalmente e ganhando MUITO dinheiro com isso. Resumindo: o nosso sistema não funciona, estamos devolvendo criminosos perigosos para o convívio em sociedade sem que nada aconteça. A reclamação corrente de que ninguém fica preso não é mera invenção de gente desinformada e assustada, é fato. E não se aplica somente a grandes criminosos, aqueles que causam mais transtorno e alteram nossas vidas também são premiados da mesma forma. Estupradores, assaltantes, ladrões de carros e toda sorte de criminoso volta às ruas em pouquíssimo tempo. As estatísticas comprovam que a maioria dos crimes é cometida por reincidentes, indivíduos que possuem extensas fichas criminais. Isso gera um grande contingente de pessoas perigosas andando livremente por aí, cometendo delitos e, o pior de tudo, sem temer nada pois sabem que a prisão não irá durar muito. Se trata de gente experiente e cada vez mais violenta, pois andam geralmente drogados, já tiveram experiências anteriores que possibilitaram desenvolver um conhecimento prático real e que acabam "escalando" no mundo da violência.

Esta notícia aqui é do mesmo dia do ataque em Farroupilha e esta outra eu até me recuso a comentar. Estejam certos, a coisa toda tende a piorar caso não ocorra uma drástica mudança. Si vis pacem para bellum.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Kagemusha

Enquanto penso sobre o que vou falar no próximo post vou dar a dica de filme: Kagemusha, A Sombra do Guerreiro. É uma obra do mestre Kurosawa, ótimo filme e que recria o Japão feudal com toda a atmosfera do tempo dos samurais. Está nas bancas nesta coleção da revista Veja (tinha que servir pra alguma coisa) por 13 pilas e 90, acompanha um livreto de muito boa qualidade.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Treinamento com borrachas

O Daniel Pinto escreveu um post muito legal sobre treinamento com borrachas. É um bom guia para quem quer iniciar este tipo de treinamento, que trabalha bastante a potência e velocidade. O blog do Pinto-san está aí nos links, o post sobre as borrachas está aqui.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Os 10 preceitos de Anko Itosu

Iain Abernethy

O que chamamos de “tradicional” nas artes marciais muitas vezes não tem nada de tradicional. Mencione karate tradicional hoje e as pessoas imediatamente vão pensar em quimonos brancos, faixas coloridas e andar de um lado para o outro da sala em linhas. Todas essas são práticas modernas e nenhuma delas seria reconhecida pelos fundadores da arte.
Todos os mestres do passado foram inovadores e nenhum deles ensinou a arte exatamente da mesma maneira que ela foi ensinada a eles. A verdadeira tradição foi uma constante mudança e sempre foram somente os conceitos essenciais que deveriam permanecer constantes. Então, aonde estão os conceitos essenciais sobre os quais a tradicional arte do karate foi baseada?
Não existem muitos registros escritos da história do karate, em grande parte devido aos fatos do secretismo que originalmente cercou a arte e do bombardeio de Okinawa durante a 2ª Guerra Mundial. Um importante documento que temos acesso são os 10 preceitos do karate segundo Anko Itosu.
Anko Itosu (1832-1915) foi um dos verdadeiros inovadores do karate; ele foi o criador dos Pinan (Heian) kata e responsável pela introdução do karate no sistema escolar de Okinawa. Para tornar o karate adequado às crianças, Itosu diluiu o karate ensinado a elas. Como parte disso, ele iniciou ensinando os kata sem as suas aplicações para que as crianças pudessem obter benefícios físicos sem dar irresponsavelmente a elas o conhecimento dos métodos violentos e brutais, os quais os kata foram criados para preservar.
É minha visão que Itosu tencionava adotar dois tipos de karate: o karate de combate original e a nova versão infantil. Entretanto, como sabemos agora, foi a versão infantil que realmente “decolou” e as ramificações que ainda são sentidas hoje. As modificações de Itosu possibilitaram que a arte se difundisse - é razoável argumentar que a arte jamais teria se difundido no Japão e de lá para o ocidente sem as suas modificações - mas elas sem dúvida provocaram que uma versão “domesticada” do karate fosse popularizada.
Em 1908, Itosu escreveu uma carta delineando suas visões sobre o karate e explicando por que ele entendia que deveria ser introduzido no sistema educacional de Okinawa. É esta carta, e os 10 preceitos contidos nela, o assunto deste artigo. A carta nos dá uma visão do karate que saía das sombras e iniciava sua jornada para se tornar uma arte praticada por milhões.
Existem algumas traduções em inglês deste importante documento; mas, infelizmente, elas variam muito e é difícil determinar qual está correta. É de se esperar alguma variação quando traduzimos um texto, entretanto, algumas dessas variações não somente dizem a mesma coisa de maneira diferente mas muitas vezes expressam sentimentos muito diferentes. Muitas delas foram também feitas por artistas marciais. Não posso deixar de suspeitar que eles inadvertidamente puseram suas próprias visões sobre o karate em suas traduções.
Existe um livro raro de 1938, compilado por Genwa Nakasone, chamado “Karate-Do Taikan”. Este importante livro contém material de mestres como Funakoshi, Mabuni e Otsuka. Também contém fotos com qualidade relativamente boa da carta de Itosu. Eu consegui uma cópia do livro em Okinawa e mandei cópias da carta – sem nenhuma informação sobre o contexto – para uma das maiores empresas de traduções do Reino Unido. Como não-praticantes e tradutores profissionais eu achei que eles estariam mais aptos a dar uma tradução mais apurada e menos “viciada”.
A companhia me informou que o documento estava escrito em “um estilo literário muito antigo” e assim foi difícil traduzi-lo; mesmo para tradutores profissionais. Isto talvez ajude a explicar por que existe tanta variação nas traduções existentes? A companhia contatou um especialista nos EUA que seria capaz de traduzir corretamente o documento e as cópias foram enviadas a ele. É a tradução dele que está incluída neste artigo.
A tradução foi feita a partir de cópias da carta de Itosu escrita a mão. Esta tradução foi feita de maneira independente por um profissional de alto nível que é um especialista neste tipo de trabalho. O tradutor não é um artista marcial e assim não teria nenhuma visão particular para promover. Sendo assim, não tenho nenhum motivo para duvidar de sua precisão. Não quer dizer que as outras traduções sejam necessariamente imprecisas – ela é similar a outras, como você poderia esperar – entretanto é inegável que em algumas partes a tradução que encomendei expressa sentimentos muito diferentes de outras traduções. Eu encorajo o leitor a comparar as traduções existentes e decidir por si próprio qual faz mais sentido e parece ser a mais precisa.
A tradução encomendada da carta de Itosu de 1908 está abaixo na íntegra:

O Karate não se desenvolveu a partir do Budismo ou Confucionismo. No passado, as escolas Shorin-ryu e Shorei-ryu foram trazidas à Okinawa da China. Ambas têm seus pontos fortes e assim irei listá-los abaixo da maneira como são, sem embelezamento:

1- O Karate não é praticado somente para seu benefício próprio; ele pode ser usado para proteger sua família ou seu mestre. Não se destina a ser usado contra um único agressor, mas como uma maneira de evitar ferimentos usando pés e mãos caso seja confrontado por um vilão ou malfeitor.

2- O propósito do karate é tornar os músculos e ossos tão duros quanto rochas e usar as mãos e pernas como lanças. Se as crianças iniciassem a treinar naturalmente nas proezas militares enquanto na escola fundamental elas ficariam aptas ao serviço militar. Lembre-se das palavras atribuídas ao Duque de Wellington após derrotar Napoleão : "A batalha de hoje foi vencida nos campos de jogo de nossas escolas".

3- O karate não pode ser aprendido rapidamente. Assim como um touro que se move lentamente pode viajar mil quilômetros, se alguém treinar diligentemente por uma ou duas horas todos os dias, em três ou quatro anos irá ver uma mudança no físico. Aqueles que treinarem desta maneira irão descobrir os princípios mais profundos do karate.

4- No karate o treinamento das mãos e dos pés é importante, então você deve treinar meticulosamente com um makiwara. Para fazer isso, abaixe seus ombros, abra os pulmões, reúna sua força, agarre o chão com os pés e concentre sua energia no baixo abdômen. Pratique utilizando cada braço de 100 a 200 vezes por dia.

5- Quando praticar as bases do karate certifique-se de manter as costas eretas, ombros abaixados, colocar a força em suas pernas, manter-se firme e direcione a energia para o baixo abdômen.

6- Pratique cada uma das técnicas do karate repetidamente. Aprenda bem as interpretações de cada técnica e decida quando e de que maneira aplicá-las quando necessário. Entre, contra-ataque, afaste-se: é a regra para o torite.

7- Você deve decidir se o karate é para sua saúde ou para auxiliar no seu dever.

8- Quando treinar, faça como se estivesse no campo de batalha. Seus olhos devem ficar penetrantes, os ombros baixos e o corpo endurecido. Você deve sempre treinar com intensidade e espírito como se realmente estivesse encarando o inimigo e desta forma você naturalmente ficará pronto.

9- Se você usar excessivamente sua força no treinamento de karate isso irá causar a perda de energia no baixo abdômen e será perigoso para o seu corpo. Seus olhos e seu rosto ficarão vermelhos. Seja cuidadoso para controlar seu treinamento.

10- No passado, muitos mestres de karate gozaram uma longa vida. O karate auxilia no desenvolvimento de ossos e músculos. Ajuda tanto na digestão quanto na circulação. Se o karate fosse introduzido desde o ensino fundamental, então produziríamos muitos homens capazes de derrotar 10 agressores cada.

Se os estudantes da faculdade de formação de professores aprendessem karate de acordo com os preceitos acima e, após a graduação, disseminassem isto para as escolas elementares em todas as regiões, em 10 anos o karate iria se espalhar por toda Okinawa e para a ilha principal do Japão. O karate, assim, faria uma grande contribuição para nosso exército. Espero que você considere seriamente o que escrevi aqui.
Anko Itosu, Outubro de 1908.

É óbvio que este é um documento muito importante e eu deixarei o leitor ponderar sobre o significado de cada um destes preceitos por si. No entanto, gostaria de discutir brevemente alguns pontos de interesse inicial.
A primeira coisa que me surpreendeu é que o karate proposto por Itosu para as escolas de Okinawa, mesmo simplificado como foi, obviamente não tinha o propósito de ser totalmente não-combativo. É certo que ele parecia estar vendendo a arte não somente por seus benefícios sobre a saúde, mas também por seu uso em combate e sua habilidade de produzir eficazes lutadores.
Talvez seja porque a intenção original de Itosu fosse que as crianças acabassem avançando para aprender a verdadeira arte quando alcançassem a vida adulta - a qual teria presumivelmente incluída a instrução das aplicações dos kata, treino com a makiwara, etc - após ter recebido uma base na versão infantil do sistema. Assim, nas palavras de Itosu, o karate produziria “muitos homens capazes de derrotar 10 oponentes”. Certamente o décimo preceito sugere isso. Infelizmente, as mudanças de Itosu tiveram conseqüências imprevistas e o kata agora é mais comumente ensinado sem nenhuma aplicação.
Também acho muito interessante que a linha de abertura (“O karate não se desenvolveu a partir do Budismo ou do Confucionismo”) torna claro que o karate não está baseado em princípios budistas ou confucionistas. Itosu obviamente sentiu ser importante estabelecer logo no princípio que a arte que ele praticava não era um desenvolvimento dessas religiões/filosofias. Isto é importante pois alguns erroneamente enxergam a arte inteiramente sob uma perspectiva budista ou confucionista. Seguidores de outras religiões algumas vezes abandonam o estudo do karate já que acreditam que ele é baseado em práticas religiosas contrárias às suas crenças. Itosu nos diz que não é o caso e que o karate não tem fundamento religioso.
O preceito 1 contém a linha “não se destina a ser usado contra um único agressor, mas como uma maneira de evitar ferimentos usando pés e mãos caso seja confrontado por um vilão ou malfeitor”. Isto torna claro que o karate original não servia para uma luta “limpa” ou luta consensual contra um único oponente ou amigo karateka, mas para defesa-pessoal civil. Como um artista marcial dos dias atuais eu acho importante (e divertido) treinar para ambos os ambientes, mas é essencial entender que uma luta limpa e a defesa-pessoal não utilizam os mesmos métodos. O que funciona bem numa área não irá necessariamente funcionar na outra. Itosu obviamente entendia a diferença entre ambas, já que marcou a diferença em seu primeiro preceito. Como exemplos dessas diferenças: ajustar a distância, habilidoso trabalho de movimentação, guarda, fintas e combinações variadas são comuns em luta consensual mas irrelevantes para a proteção-pessoal civil; é por isso que tais métodos não aparecem nos kata.
Quando estudarmos o kata – que é um arquivo da arte original que Itosu está descrevendo – precisamos nos certificar que o kata foi criado para guardar os métodos de proteção-pessoal. É quando as pessoas enxergam os kata da perspectiva de uma luta limpa que eles entendem erroneamente sua natureza e assim cometem incorreções sobre a maneira como deveriam ser aplicados. Um exemplo comum disso é quando um karateka faz uma “demonstração competitiva de bunkai” que começa com os antagonistas em distância de luta (fora da distância de chute) em oposição à curta distância associada ao combate real. Ao fazer isto eles estão tentando forçar uma estaca quadrada em um buraco redondo e, assim, não é surpresa que freqüentemente se desviem do kata durante tais apresentações.
Itosu era empregado como escriba do rei de Okinawa e fora altamente instruído nos clássicos chineses. Após a dissolução da monarquia okinawana, Itosu se tornou professor de escola. O altamente educado Itosu também revelou um conhecimento da cultura ocidental ao atribuir palavras ao Duque de Wellington no preceito 2. Como observação, é interessante notar que Itosu diz que as palavras foram “atribuídas” ao Duque. A declaração “A batalha de hoje foi vencida nos campos de Eton” certamente é muito atribuída ao Duque de Wellington, mas ele não disse tais palavras. Foi na verdade alguns anos após a morte de Wellington que o historiador e propagandista francês, Conde de Montalembert, primeiramente atribuiu tais palavras a ele. Itosu sabia disso? Ou foi a escolha dos caracteres que traduzidos dizem “atribuídas ao” ao invés de “ditas por” mera coincidência? Se não foi coincidência então isto sugere que Itosu era extremamente instruído na história militar ocidental.
O preceito 4 fortemente encoraja o diligente uso de equipamento de impacto. No tempo de Itosu, o makiwara era tudo o que tinham disponível. Entretanto, se ele estivesse por aí atualmente tenho certeza de que faria uso de sacos de pancada, luvas de foco, escudos para chutes, etc. Não é incomum para os karatekas atuais negligenciarem o treino de impacto, mas como podemos ver através do escrito de Itosu sto não é tradicional e nem está de acordo com as práticas originais do karate.
O preceito 6 encoraja o estudo de bunkai, ou aplicações dos kata, e pessoalmente explorar o uso adequado de tais bunkai em combate. Muitos karateka não incluem bunkai em seu treino e assim não treinam de acordo com este princípio. Itosu também deixa claro que devemos decidir quando e como as técnicas de karate devem ser aplicadas. Mesmo pessoas que estudam bunkai falham neste quesito. Saber para que serve um movimento de kata e saber como e quando efetivamente aplicá-lo são duas coisas diferentes.
Na minha cabeça, a única coisa que realmente ajuda a decidir como as técnicas devem ser aplicadas é praticar aplicando elas em um ambiente ativo. É por esta razão que luta baseada nos kata é fundamental para minha abordagem de quatro estágios, já que ela assegura que a teoria do kata seja posta em prática.
A última frase do sexto preceito é outra que acho muito interessante. “Torite” se refere ao “grappling” (literalmente “mãos que agarram”) e é utilizado nos meios do karate como o lado “grappling” da arte original. “Torite” também era um termo antigo para Ju-jutsu e foi usado desta maneira por Jigoro Kano em alguns de seus escritos. A regra de Itosu “entre, contra-ataque, afaste-se” parece ser um aviso para evitar o agarramento (quando agarrado você não pode imediatamente sair do local, então entre lá, faça algum estrago e aí saia). Este é um grande conselho para proteção-pessoal e está totalmente de acordo com a natureza do karate conforme explicado no preceito 1.
O preceito 7 aconselha você a decidir se seu karate é para saúde ou “para auxiliar no seu dever” (ou seja, seu uso prático). Os preceitos 2, 3, 9 e 10 fazem referência aos benefícios físicos do karate. Preceitos 1, 2, 6, 8 e 10 todos fazem referência ao uso combativo do karate. Contudo, não acho que Itosu esteja dizendo que o treinamento deve ser totalmente de um jeito ou de outro, e sim que devemos ter claros os objetivos de nosso treinamento. Também sinto que ele esteja demarcando a diferença entre a versão infantil do karate orientada para a saúde e a arte de combate original.
O preceito 8 aconselha a treinarmos de maneira intensa e com espírito, de maneira que estaremos preparados para a natureza severa e impiedosa do combate. Esta intensidade no treinamento é uma das chaves para a verdadeira tradição do karate. Na verdade, esta intensidade física e mental é mais importante do que a técnica. No livro “Karate-Dô: Meu modo de vida”, Gichin Funakoshi, que foi um estudante de Itosu, escreveu: “Treine com o coração e com a alma sem se preocupar com a teoria. Muitas vezes um homem desprovido daquela qualidade essencial da seriedade absoluta irá se refugiar na teoria”. Podemos ver este “irá se refugiar na teoria” e falta de intensidade em alguns treinamentos “tradicionais” da atualidade. Para seguir a verdadeira tradição, faríamos bem em aderir ao preceito 8.
Os 10 Preceitos de Itosu são, inquestionavelmente, um dos mais importantes documentos históricos do karate. Para compreender os kata e a verdadeira natureza do karate tradicional é importante estudarmos as palavras e orientações de pessoas que formaram a arte. Espero que você tenha gostado desta tradução dos 10 preceitos de Itosu e que você, como Itosu aconselha, “considere seriamente” o que ele escreveu.

Tradução do original que pode ser encontrado aqui. Autorizado pelo autor.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Arte marcial não é defesa pessoal

Em primeiro lugar, arte marcial é uma expressão ocidental que não traduz exatamente o significado da expressão japonesa Budô. Segundo diversas fontes (já que a língua japonesa não é meu forte) o caractere "Bu" significa, literalmente, "parar a lança" ou "parar a alabarda". Eventualmente, encontramos traduções que dizem ser "parar o conflito" o correto. De qualquer maneira, a idéia central é parar uma agressão. Já a palavra "marcial" faz referência ao deus romano da guerra, Marte. Está diretamente associada à guerra e à violência (dois de seus filhos lhe eram seguidores e sempre se apresentavam antes do pai nas batalhas: Deimos, o terror, e Fobos, o medo). Arte marcial, assim, é a arte de guerrear. O sufixo "Dô" significa Caminho, caminho de vida, modo de vida. Budô seria, então, o caminho de parar a violência ou, talvez, o modo de vida daquele que pára a lança; enfim, o oposto da idéia que a expressão ocidental passa.
Dito isso, é importante definir o conceito moderno de Budô, ou melhor, o que o constitui. Budô é uma composição de defesa pessoal, ginástica(educação física), esporte, expressão corporal, treinamento mental e, até mesmo, prática espiritual. O conceito de defesa pessoal é bem mais simples: é um sistema que possibilita ao indivíduo, armado ou não, defender a si próprio de todo tipo de agressões físicas. É correto afirmar que todo Budô teve sua origem na defesa pessoal. Mas e hoje, tais sistemas ainda atingem seus objetivos? O Kendô, por exemplo, originou-se do Kenjutsu - a arte da espada samurai. Certamente era um meio adequado para um guerreiro que andava dia e noite com suas espadas na cintura, dentro e fora do campo de batalha. E no momento atual? Na maioria dos países nem sequer é permitido o porte de armas cortantes de grande comprimento (no Brasil a lâmina deveria ter menos de 15cm) e certamente a espada não é nada adequada para enfrentar o inimigo moderno. A arte marcial do Kendô, portanto, teria pouca utilidade como defesa pessoal. O Karate-Dô, em teoria, leva vantagem neste ponto pois foi criado justamente com o fim da defesa pessoal civil desarmada. Na prática, muito do treinamento técnico atual é ditado pelo contexto da competição esportiva que pouco tem a ver com a proteção pessoal. Além disso, o agressor que encontramos nas ruas hoje em dia é muito diferente do que se poderia encontrar em Okinawa quando a arte se desenvolveu. São exemplos de como duas artes marciais (Budô) extremamente eficazes em seu contexto original perdem (em diferentes níveis) seu valor como defesa pessoal. É fundamental que um sistema de defesa pessoal tenha conhecimento do inimigo que irá enfrentar (quem é, como age, quais suas armas, etc), que adote uma estratégia adequada à sua técnica e também à do inimigo(um plano de ação) e que o treinamento técnico tenha sempre em vista quais as armas e táticas do agressor (a técnica é treinada de modo que funcione com aquele adversário). Além disso, a prevenção sempre foi a primeira ação dentro da defesa pessoal e ainda ocupa, ou deveria, boa parte das reflexões de um artista marcial. Como vivemos num mundo "civilizado" regido por leis também é importante termos conhecimento dos aspectos legais do uso da força para que não nos tornemos os criminosos numa situação na qual iniciamos no papel de vítimas.
O treinamento adequado de qualquer arte marcial pode desenvolver no praticante qualidades e habilidades necessárias à sua proteção. A prática tradicional, com seus padrões estabelecidos, seus rituais e sua cultura própria é capaz (conforme a arte) de fornecer algumas das armas adequadas(como o preparo físico e mental para enfrentar a violência), mas dificilmente irá ensinar o modo adequado de usá-las no contexto atual da violência urbana. Jovens drogados, criminosos armados (geralmente com armas de grande poder destrutivo), gangues que se destacam pela violência extrema e gratuita e um sistema jurídico que parece proteger mais o agressor que suas vítimas não têm nada em comum com o Japão anterior ao séc. XX. Sempre que uma arte marcial se afastar de algum dos fatores elencados ela também se afasta da defesa pessoal. Infelizmente, sou da opinião que na maioria dos Dôjo não é dada a devida atenção a diversos deles, chegando mesmo ao desconhecimento absoluto de alguns destes fatores. A conclusão, óbvia, é que arte marcial não é, necessariamente, defesa pessoal.